O lançamento será das 18h30 às 22h30 de 26 de julho, no Anfiteatro 9 da UnB – palco de grandes plenárias do movimento estudantil na década de 1970 -, seguido de uma mesa redonda com parte dos autores dentro da programação da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

Movimento estudantil da UnB é resgatado em publicação histórica pela jornalista Maria do Rosário Caetano.

O golpe militar de 1964, que contou com o apoio quase unânime das camadas dominantes e de setores da classe média, as invasões da polícia ao câmpus da Universidade de Brasília (UnB), com a prisão indiscriminada de professores e alunos considerados subversivos, e tantos outros episódios que marcaram a política nos anos 1960 e 1970, passando pelo movimento Diretas Já, até o impeachmant do presidente Fernando Collor de Mello, estão reunidos em uma publicação histórica, que será lançada no emblemático Anfiteatro 9 da Unb em 26 de junho, durante a 74ª reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) – será a quarta vez que a instituição sediará o evento. Paralelo ao lançamento, os organizadores tentam uma pauta no Cine Brasília para uma mostra de filmes sobre os “anos de chumbo” da UnB.

Organizado pela jornalista e pesquisadora Maria do Rosário Caetano, o livro UnB Anos 70 – Memórias do Movimento Estudantil (editora Alameda), conta com a colaboração de 100 egressos da universidade, como Arlindo Schnaglia, formado em medicina e deputado federal há sete mandatos, Paulo Bernardo, ex-ministro do Planejamento e das Comunicações, Arlete Sampaio, ex-vice governadora de Brasília, Érika Kokay, deputada federal, psicóloga e sindicalista, Augusto Carvalho, sociólogo e político, João Maia, economista e deputado federal, os jornalistas Davi Emerich e Tereza Cruvinel, e Júlio Gregório, professor e ex-secretário de Educação do GDF.

Ação entre amigos

UnB Anos 70, resume Maria do Rosário, é resultado de um mutirão de colegas, hoje sexagenários ou septuagenários, que não se viam desde as passeatas pelo câmpus, assembleias no Teatro de Arena, conferências da SBPC, aulas especiais nos anfiteatros do Minhocão ou, até, nos cárceres da Polícia Federal, força repressiva que manteve alguns deles presos por meses.

O livro reúne, em suas 456 páginas, artigos e fotografias – a maioria do Correio Braziliense – do período mais conturbado do movimento estudantil no país, assim como documentos da Comissão Nacional da Verdade – colegiado instalado pela União em 2012, que investiga violações de direitos humanos ocorridas entre setembro de 1946 e outubro de 1988. Mesmo antes do lançamento, a publicação, com orelha e contracapa assinadas pelo cineasta e documentarista paraibano Wladimir de Carvalho, já tem quase mil exemplares vendidos.

 “Tudo no livro é polêmico”, diz Maria do Rosário Caetano, lembrando que a ideia começou a ser gerada em 2021, quando veio o insight de reviver as memórias daquele período, “antes que elas ficassem esclerosadas”. Segundo ela, o documentário Libelu – Abaixo a Ditadura, de Diógenes Martins, que mostra onde estão e como pensam os jovens trotskistas que foram às ruas contra os generais no auge da ditadura militar, foi outra grande motivação para a realização do projeto. “Este filme retrata apenas os fatos ocorridos no Rio de Janeiro e São Paulo, enquanto Brasília teve muita importância naquele período. Não há na película um momento sequer dos episódios ocorridos na UnB, instituição que sofreu nada menos que três invasões militares em seus 60 anos”, diz.

Maria do Rosário conta ainda que o período de isolamento imposto pela pandemia foi crucial para o foco de união necessário para a produção do livro. Segundo ela, o processo teve início com 15 pessoas, e o grupo foi crescendo rapidamente. “Chegamos a 35, 40 e, o final, já havia mais de 100 envolvidos. Por fim, reuni artigos de 40 colaboradores, que escreveram depoimentos memorialísticos, além de uma série de pesquisas cronológicas com histórias da década de 70, sobretudo do ano de 1976, quando explodiu o movimento estudantil”, diz, lembrando que entre 1973 e 1976 o curso de medicina da UnB promoveu um trabalho de mobilização muito importante para esse ressurgimento, plantando semente do Diretório Central Acadêmico (DCE) da UnB. “Naquele período fazia-se tudo muito escondido. Havia muito medo”, recorda.

Anárquico, mas prazeroso

Para Júlio Gregório, UnB Antos 70 “é um livro meio anárquico, mas muito gostoso de ler”. “Traz à tona um tempo da história que ficou sem documentação, quando a UnB estava dizimada, era uma terra arrasada”, diz. Gregório é mais um a destacar que a publicação representa a importância que o movimento estudantil da época desempenhou na geração de novas lideranças políticas para o país. “Durante os 21 anos da ditadura, a UnB foi alvo constante de intervenções e punições, mas a instituição se manteve o tempo inteiro como uma pedra no sapato dos militares.”

Entre os fatos marcantes relatados na publicação, ele destaca o ocorrido em 11 de outubro de 1965, quando o então reitor da UnB, Laerte Ramos de Carvalho demitiu arbitrariamente três influentes professores da instituição, Ernani Maria de Fiori, Edna Soter de Oliveira e Roberto Décio de Las Casas e, em protesto, o corpo docente decretou uma greve de 24 horas, com adesão dos estudantes.

Diante do protesto, o reitor solicitou envio de tropas militares que cercaram todas as entradas do câmpus e, na semana seguinte, demitiu outros 15 professores, ação que levou 223 dos 305 docentes a pedirem demissão.

Caixa de ressonância

“O movimento estudantil da época foi muito importante, uma caixa de ressonância que repercutiu nacionalmente, levando os demais setores a forçar a democracia no país”, diz Gregório. “Espero que o livro reacenda a chama do movimento. Que a moçada de hoje saiba que muitos de nós viemos a fazer história, e que esses jovens tenham a consciência de que eles serão o futuro.”

A jornalista Tereza Cruvinel afirma que abraçou a ideia por dois motivos básicos: a confiança na capacidade realizadora de Maria do Rosário Caetano e o fato de sempre ter ficado incomodada com a secundarização do movimento estudantil dos anos 70, particularmente o da UnB, em relação ao movimento dos anos 60. “Os registros, em livro, filmes ou reportagens, sempre focaram muito mais os fatos ocorridos no Rio e em São Paulo, como a Passeata dos Cem Mil, a Ocupação da Maria ou a queda do Congresso da UNE, em Ibiúna”, diz.

Cruvinel lembra que, ao longo da ditadura militar, os estudantes representaram a vanguarda da resistência e enfrentaram corajosamente a força bruta da repressão, mas que foram os enfrentamentos ocorridos em Brasília, no quintal do regime, que mais incomodaram os militares. “Tanto é que a UnB foi invadida, com prisões de alunos e professores uma semana depois do golpe. E foi novamente invadida em 1965, em 1968 e em 1977. Da UnB saiu Honestino Guimarães, o mártir mais simbólico da sanha contra a juventude. E também João Simplício, da geração 70, que, embora não tenha sido assassinado, não suportando as feridas deixadas pela perseguição, deu cabo da própria vida.”

A jornalista pondera que a UnB, por diferentes motivos, atraiu como nenhuma outra universidade o ódio da ditadura, por ficar na capital, por ter sido criada por Darcy Ribeiro, homem forte do regime derrubado, por ter sido concebida no governo JK e ter tido a lei de criação sancionada por Jango e, ainda, por encarnar um projeto inovador, sintonizado com o projeto nacional em curso antes do golpe, interrompido pelos militares em nome do combate ao comunismo.

“Como todos que participam do livro, sou filha da UnB, onde vivi o movimento estudantil em 1977, graduei-me e cursei o mestrado. Meus caminhos na vida foram determinados pelo que lá vivi. Não fui uma protagonista importante do movimento. Integrei a ‘segunda vanguarda’, a turma que, em 1977, depois que as principais lideranças foram presas, expulsas, suspensas ou forçadas a recuar, segurou a greve até quando foi possível, em setembro. Juntei-me, entretanto, à equipe formada por Rosário por entender que este resgate é importante”, frisa Cruvinel.

Ausências

Ela lembra que muitas figuras destacadas do movimento estudantil não foram localizadas a tempo de darem seus depoimentos. Além disso, 14 morreram. A saída, segundo ela, foi suprir essa lacuna com o registro de suas atuações no Caderno de Imagens e Textos Breves. A jornalista observa que o livro não tem pretensôes acadêmicas nem historicistas, tampouco pretende esgotar o tema. “É um conjunto de memórias pessoais que, somadas com a evocação dos que já partiram, pretende contribuir para a formação de uma memória coletiva. Traz ainda uma cronologia dos fatos que marcaram o movimento estudantil da UnB nos anos 70, além de bibliografia e filmografia relativas ao tema.”

Cruvinel recorda, ainda, que, certa vez, um grande amigo da vanguarda estudantil da década de 1960 relatou: “‘Nós fizemos o movimento estudantil revolucionário. Vocês fizeram o democrático’. Não discordei, nem acho que o movimento estudantil dos anos 70 tenha sido menos relevante. Ainda que na vanguarda alguns sonhassem com a revolução, a que sensibilizou a massa estudantil foi a luta pelo fim da ditadura e pela restauração da democracia, com a anistia e a Constituinte. Neste sentido, fomos vitoriosos, embora estejamos vivendo atualmente tantos ataques à democracia duramente conquistada.”

Trechos do livro UnB Anos 70 – Memórias do Movimento Estudantil


Fugindo dos cavalos da PM pelo Minhocão


“Minha mais traumática lembrança deste período foi o dia da invasão da UnB pelo Exército. Após vários dias de greve, soldados a cavalo entraram Minhocão adentro transformando os largos corredores em campos de batalha. O barulho de cascos contra o cimento e os cassetetes em riste dispersaram alunos e professores correndo pra todo lado.

Desse momento me lembro que eu e meu professor do curso de Comunicação, Milton Cabral Viana, um homem de inteligência brilhante, descemos juntos correndo as escadas para o subsolo da Entrada Norte e um soldado tentou nos perseguir a cavalo, escadas abaixo. O cavalo, mais inteligente que ele, se negou. Eram estreitas para tamanha proeza.

Nossa vantagem é que conhecíamos o subsolo do Minhocão como a palma da nossa mão e nos enfiamos numa das centenas de salas e depois fugimos para o outro lado. Eu tive um branco. Nunca consegui me lembrar como chegamos até um carro e fomos pra casa com a universidade cercada. Naquela época eu não dirigia e nem tinha carro. Naquele dia e nos seguintes muitos foram presos. Alguns permaneceram presos incomunicáveis, em condições as piores possíveis. Não escaparam nem filhos de altas patentes das Forças Armada.” Evelyn Penna


No meio do caminho havia um bode


“Aureolino Moreira Bonfim, conhecido mais como Ceará, talvez tenha sido uma das figuras mais folclóricas e conhecidas do movimento estudantil da UnB. Morador do Centro Olímpico, na verdade o campus era praticamente a sua residência. Dele, que nascera em Crateús (CE), filho de Sebastião Benfin Filho e Maria do Socorro Bonfim. Dizia-se que entrara na universidade para trabalhar na limpeza e, por esforço próprio, acabou tornando-se aluno de Sociologia, sua matrícula é de 1972. Era bolsista e trabalhou repondo livros na Biblioteca. Fazia um tipo guerrilheiro romântico. Um tanto desleixado, óculos largos, cabelos desalinhados e um pouco avermelhados, barba imensa, sandália e bolsa de couro com alça comprida, voz estridente e estranha, gingava um pouco ao caminhar.


Carlos Megale conta que em uma madrugada de sábado, um grupo de umas seis pessoas saiu da biblioteca em direção ao Centro Olímpico, em meio ao cerrado, e encontrou um despacho, muito comum nas cercanias, com uma garrafa de pinga, uma vela acesa e um bode, amarrado e vivo. Sem dar bolas às apreensões e cismas dos companheiros, Ceará levou o bode, o sacrificou, descarnou e organizou um churrasco na tarde do mesmo dia, entrando pela noite.” – João Simplicio Lopes Martins (em memória de Aureolino Moreira Bonfim)


Noites frias, esconderijo e “miguelitos”


“Em 1968, a UnB sofreu duas invasões seguidas, a de junho e a mais violenta, a de agosto. Para escapar das prisões, tínhamos nossos esconderijos, e um deles era o prédio que seria destinado à teologia e hoje é sede da Fundação Educacional do Distrito Federal. Passamos algumas noites frias ali, escondidos no matagal.

Em julho de 1968, na véspera de um desfile militar, espalhamos sobre a pista do Eixo Monumental uma grande quantidade de “miguelitos”, que nós mesmos fabricamos. Trata-se de um prego sem cabeça, dobrado de tal forma que ao cair no chão terá sempre uma ponta para cima. Foram tantos pneus furados que o desfile teve que ser suspenso para que houvesse uma varredura do asfalto. E lá estava o João Simplício, com seu entusiasmo de sempre.

Nessa época a ditadura já havia indicado o capitão-de-mar-e-guerra José Carlos de Azevedo como vice-reitor para comandar o esquema de repressão e controle no campus. Certa feita, quando eu caminhava com outros para o Minhocão, ele me chamou pelo nome, foi caminhando a meu lado e dizendo: “Quero te alertar que o Serviço de Inteligência (ele era ligado ao CENIMAR) está de olho em você. Sabemos que você está sendo ingenuamente usado pelos comunistas para promover agitação. E que você é o único membro da família que conseguiu chegar ao ensino superior. Você é a esperança econômica para a família, evite as más influências”. Ele batia e assoprava.

Em 13 de dezembro de 1968 foi editado o AI-5 e a ditadura entrou em sua fase mais violenta. Para a repressão ao movimento estudantil editaram o Decreto-lei 477. Em julho de 1969 João Simplício, eu e outros estudantes fomos expulsos com base no decreto, ficando proibidos de estudar em qualquer universidade pelo prazo de três anos. – Anelino José de Resende.

Serviço

O livro UnB Anos 7 – Memórias do Movimento Estudantil será lançado das 18h30 às 22h30 de 26 de julho, no Anfiteatro 9 da UnB – palco de grandes plenárias do movimento estudantil na década de 1970 -, seguido de uma mesa redonda com parte dos autores. Preço sugerido R$ 84,00.

Fonte: Correio Braziliense

https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/ensino-superior/2022/06/5017275-movimento-estudantil-da-unb-e-resgatado-em-publicacao-historica.html
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