Para celebrar centenário, editora Ubu traz ao Brasil livro inédito que reúne discursos e entrevista do pensador. Ativista estadunidense foi assassinado há 60 anos, durante um comício em Nova Iorque
BRASIL DE FATO – LUCAS SALUM
Neste dia 19 de maio, completam-se 100 anos do nascimento de Malcolm X, ativista pelos direitos humanos, especialmente da população negra.
Nascido nos Estados Unidos, ele foi assassinado antes de completar 40 anos, em 1965, no momento anterior ao comício que realizaria em Nova Iorque. O ativista foi alvejado por mais de 20 tiros.
Passados mais 60 anos de sua morte, o pensamento de Malcolm X continua como uma referência para organizações que lutam contra o racismo, inclusive para movimentos culturais como no caso do rap brasileiro.
“Os textos do Malcolm X são assustadoramente atuais. Tem horas que parece que ele está falando da Palestina, dos Estados Unidos, do Brasil, porque a luta ainda é contra a mesma coisa, o problema ainda é o mesmo: o colonialismo”, afirma a artista Roberta Estrela D’alva, uma das responsáveis por construir o hip-hop no Brasil e que foi convidada para participar da publicação Custe o Que Custar, da editora Ubu, que trouxe pela primeira vez ao Brasil um livro lançado nos anos 1970 com discursos de Malcolm X ao longo da vida.
“Inclusive, eu consigo relacionar muitas coisas que o KL Jay fala hoje com os dizeres do Malcolm X. O KL Jay fala ‘não queira ser aceito, o sistema não gosta de você, não fica fazendo esforço pra ser aceito, esse sistema não quer você… faça o seu negócio.’”, lembra a atriz, que gravou os discursos de Malcolm X para o áudiolivro lançado pela editora.
Roberta Estrela D’alva é a entrevista do Conversa Bem Viver desta segunda-feira (19). Ela tem a trajetória construída pelo movimento do Slam e é uma das fundadoras do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, um coletivo teatral de hip hop, com mais de 20 anos te atuação em São Paulo.
Para exemplificar um pouco do pensamento de Malcolm X, D’alva traz um dos discursos do ativista, feito na década de 1960 durante a criação da Organização para a Unidade Afro-Americana, presente no livro recém lançado.
“Afirmamos que nas áreas onde o governo mostra não ter capacidade ou disposição para proteger as vidas e a propriedade de nosso povo, nosso povo está em seu direito de se proteger, usando todos os meios que sejam necessários.
(…) Sejam não violentos apenas com quem for não violento com vocês. E quando vocês conseguirem me apresentar um racista não violento, quando me apresentarem um segregacionista não violento, aí eu vou ser não violento.
Mas não venham me ensinar a não ser não violento, até que vocês ensinem esses brancos a serem não violentos.”
Confira a entrevista na íntegra
Você se lembra a primeira vez que Malcolm X apareceu na sua vida?
Sim, Malcolm X é meio que uma bruma, é uma entidade que paira. Ele chegou pra mim, sem dúvida, por meio do hip-hop.
Todas essas pessoas que lutavam pelos direitos civis, como Angela Davis, os Black Panthers, Amiri Baraka têm uma influência definitiva, definidora naquelas lutas das gangues, os Ghetto Brothers.
Eu não saberia dizer onde precisamente eu ouvi pela primeira vez, mas eu acho que por esse meio da luta negra americana, pelas músicas, pelos filmes, para o discurso.
Fo inclusive uma inspiração para a criação do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, que é a companhia da qual eu faço parte.
Angela Davis cobrava que a gente ouvisse intelectuais negras brasileiras, como Lélia Gonzalez, do que ela própria. Você acha que Malcolm X teria um discurso parecido?
Com certeza. E ele fala isso textualmente, quando ele fala que as soluções das nossas comunidades devem ser buscadas dentro da nossa comunidade, não fora.
É o que a Angela vai falar: “procure aqui, na sua comunidade brasileira”. E tinha a coisa do pan-africanismo, essa viagem que ele faz a diferentes lugares e ele entendia isso como o grande pulo do gato.
Ele fala assim, “não é uma luta americana”, embora, às vezes, ele puxe muito de que a América [do norte] seria o lugar onde isso poderia acontecer, mas desde que essa luta se coligue com os negros do mundo.
O discurso dele era pra entendermos nós como negros no mundo. Não tem o negro americano, nós somos uma grande comunidade que temos uma força e a gente precisa assinalar isso, porque quando o homem branco vier, ele tem que entender que não está lutando contra o negro, a pessoa negra americana, mas que é uma entidade mundial esse negro.
Há um discurso hegemônico que tenta associar Malcolm X com a violência. Como devemos interpretar isso?
É muito vasta a obra do Malcolm X. Isso tem a ver com o que o Malcolm X era, ele foi muitas coisas
A separação do Elijah Muhammad, a própria ida para África, ele antes da prisão, depois da prisão… não tem um Malcolm X só. Isso que é bonito, é um ser humano que vai se transformando e tá no direito de se contradizer.
E sim, ele pode ser considerado como violento, na medida em que ele fala que violência como autodefesa não é violência, é inteligência.
“Se você vai apontar uma arma na cabeça do meu filho, eu vou apontar uma arma pra você.”
É muito nítido e cristalino o raciocínio. O argumento dele era “eu não vou ser violento com quem não for violento comigo. [Mas] se for violento comigo, eu serei violento, porque eu tenho que defender a minha vida e a vida dos meus.”
Então, sim, ele foi e tinha o pensamento que alguns chamaram de raivoso ou sei lá, mas isso tem a ver com o fato de que os discursos dele traziam esse medo.
Eu estive na África do Sul, num workshop em Joanesburgo, onde a Angela Davis também estava. E no discurso final, uma das coisas era um poema que eu fiz pra ela que tinha essa provocação, de que é preciso que as nossas palavras voltem a ser perigosas como eram as da Angela Davis, como eram as do Malcolm X, que as nossas ideias voltem a dar medo.
O Malcolm está falando o tempo inteiro: “vocês estão falando que eu sou violento, [mas] vocês não têm nenhum pudor de matar pessoas no Vietnam e ser violento com as pessoas de fora. Por que não posso ser violento aqui para defender seu filho?”