Referência constante para a agricultura familiar brasileira, o Pronaf encontra-se em fase de esgotamento, foi capturado pela lógica bancária e os interesses transnacionais que sempre o rondaram, representados pelo financiamento prioritário de commodities
Por Anderson Amaro e Denilva Araújo dos Santos
1 de julho de 2024 Agricultura familiar Imagem: © Tomaz Silva/Agência Brasil/Arquivo
A agricultura familiar e camponesa é vital para a produção de alimentos, a proteção da biodiversidade e o combate à fome no Brasil. Apesar de sua centralidade para a segurança alimentar e nutricional da população e o combate à crise climática, esse seguimento fundamental para a produção e a economia do campo brasileiro enfrenta desafios que limitam seu desenvolvimento. Dentre eles, ganha destaque o estreitamento das possibilidades que o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) poderia oferecer ao desenvolvimento socioeconômico da agricultura familiar e camponesa.
Durante a década de 1990, sob a pressão de organizações do campo – então oposição ao governo – ocorreu a criação do que o Movimento dos Pequenos Agricultores, o MPA, incidente na criação da política, rememora como “pronafinho”. Criado em 1995 com o objetivo de ampliar a capacidade produtiva e elevar a renda dos/as agricultores/as, o então “pronafinho” promovia, por meio do acesso ao crédito, a retirada das famílias de agricultores do endividamento. O programa ganhou corpo e relevância a partir dos anos 2000. A expansão e aprimoramento de suas linhas de crédito e assistência técnica o tornaram uma das principais políticas de acesso ao crédito direcionada para os pequenos agricultores.
Já com o status de uma política de governo, o Pronaf se tornou programa de crédito focal direcionado à agricultura familiar e camponesa do país. Uma política pública econômica de interesse social, direcionada para promover a ascensão social dos agricultores/as familiares e camponeses. Referência constante para a agricultura familiar brasileira, o programa encontra-se em fase de esgotamento, foi capturado pela lógica bancária e os interesses transnacionais que sempre o rondaram, representados pelo financiamento prioritário de commodities.
A finalidade do Pronaf tem sido construída longe do impulso para sua criação nos anos de 1990, foi desviado pela transferência de lucros para as indústrias de tratores e máquinas agrícolas, de agrotóxicos, adubos químicos e multinacionais de sementes transgênicas. Deslocada para o campo da financeirização da produção agrícola, a finalidade do programa foi recentrada na produção de commodities e na estruturação de grandes cadeias produtivas: soja, milho, trigo e pecuária, em vez do incentivo massivo à produção de alimentos saudáveis para a população e o desenvolvimento econômico da agricultura familiar brasileira.
Juntos, esses quatro produtos priorizados pelo Pronaf absorvem cerca de 90% dos recursos do programa, deixando um percentual insignificante para alimentos da cesta básica. Essa apropriação do crédito gera consequências que têm afetado o país duramente, tais como a diminuição das áreas plantadas de feijão, arroz, mandioca entre os anos de 2022 e 2023. A predominância das grandes cadeias produtivas em um programa para o desenvolvimento econômico e social da pequena agricultura familiar provoca a diminuição – e a exclusão – do acesso de famílias camponesas ao crédito.
Este é um desvio que possui duplo efeito: a diminuição da disponibilidade de alimentos saudáveis para a população, tanto do campo quanto da cidade e o desvio dos objetivos de criação do Pronaf com a reprodução da pobreza das famílias camponesas. Se não há a possiblidade de acesso ao crédito pela via do Estado, os/as camponeses/as ficam vulneráveis à exploração por parte de atravessadores que se aproveitam de uma necessidade da população.
Esse desvio pode ser evidenciado na distorção da equalização de juros. Atualmente, gasta-se mais com esta do que com investimentos em fomento, ou Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) para produção de alimentos saudáveis e regulação do mercado interno. Os números são tão explícitos que basta mencionar que na safra de 2023/2024 foram destinados mais de R$ 9 bilhões para a equalização. Números expressivos destinados ao fortalecimento das cadeias produtivas do “agronegocinho”, o mesmo que é integrado ao agronegócio e que se esforça para ser conhecido por não precisar do Estado.
Diante desse contexto, o Pronaf deve ser reconstruído a partir de sua proposta original: um programa desenvolvido e direcionado para o apoio e o financiamento da agricultura familiar e camponesa no Brasil, com desburocratização do acesso ao programa, juros zerados para a produção de alimentos básicos que compõe o prato brasileiro – feijão, arroz, mandioca e hortifrutigranjeiros –, permitindo, portanto, a diversificação da produção e o fomento de práticas agroecológicas que valorizem e preservem os saberes tradicionais e populares do manejo da terra e o convívio com a natureza.
Frente aos efeitos da crise climática, a necessidade de medidas estruturantes de combate à fome e ao desenvolvimento econômico do campo brasileiro, o país deve aproveitar a oportunidade de uma transição profunda em seus sistemas alimentares e promover uma agricultura de base agroecológica, atenta e cuidadosa do meio ambiente e, portanto, de nossas vidas, compreendendo a saúde enquanto fenômeno amplo e integrado, preservando assim, a humanidade e sua existência.
A recente emergência climática no Rio Grande do Sul e em outras regiões do país evidencia a necessidade da realização desta mudança. Eventos climáticos extremos são cada vez mais frequentes e intensos, impactam severamente a agricultura, as cidades e as possibilidades de sobrevivência da população.
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) estimou que as mudanças climáticas geram prejuízos de até 5% do PIB agrícola mundial. A agricultura convencional, estruturada a partir das grandes cadeias produtivas para a produção de commodities contribui significativamente para o desequilíbrio ecológico, exacerbando a crise climática. No Brasil, a Confederação Nacional dos Municípios calculou prejuízos de R$ 28 bilhões com a seca e as cheias de 2023, representando mais da metade do valor contratado no Pronaf para a safra 2022/2023.
O campesinato brasileiro enfrenta uma situação complexa, resultado do processo histórico de formação econômica e social do Brasil. No entanto, a resistência e a reprodução social das famílias camponesas têm sido maiores que os problemas enfrentados. Para superar os desafios e ir além da resistência, é fundamental compreender o cenário e buscar soluções inovadoras e sustentáveis. A inflação dos alimentos, a crise do arroz, a importação de feijão e a demanda por alimentos saudáveis evidenciam a necessidade de uma agricultura de baixo impacto ambiental e a centralidade que a agricultura familiar e camponesa deve adquirir na recriação de políticas públicas que permitam a reversão do cenário de esgotamento do Pronaf.
Campesina Sudamérica e do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) Brasil.
Denilva dos Santos é camponesa, coordenadora nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), pedagoga e especialista em Gestão Pública.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil