Famílias enlutadas choram perdas e tentam lidar com os traumas e a saudade. Comitê na Secretaria da Mulher tem até março para apresentar solução.
Mila Ferreira
postado em 12/02/2023 06:00 / atualizado em 12/02/2023 00:00
Fonte: Correio Braziliense – domingo dia 12 de fevereiro de 2023
Na capital do país os feminicídios deixam, em média, 41 órfãos por ano. Nos primeiros 35 dias de 2023, no entanto, essa média ficou bem acima da registrada: nove filhos e filhas já perderam as mães, assassinadas em razão de gênero. Os dados são resultado do cruzamento das estatísticas do governo e levantamento de reportagens sobre os casos mais recentes ocorridos no DF.
Aos 49 anos, Jaqueline Guimarães custou a se dar conta de que estava enterrando a irmã caçula, Izabel Guimarães, 36, assassinada com um tiro na cabeça disparado pelo namorado. A sobrinha dela, de apenas 10 anos, assistiu à barbárie. “Por mais que a amemos, ela (filha de Isabel) nunca vai esquecer a violência vivida. Vai sempre se lembrar de ter ficado abraçada ao corpo ensanguentado da mãe”, lamentou, aos prantos, em tom de revolta.
O depoimento de Jaqueline ao Correio é entrecortado por pausas, como se ela buscasse as palavras mais apropriadas para expressar a extensão do vazio e da preocupação com a sobrinha. “As pessoas ficam dizendo para (eu) ser forte, que a vida continua. Eu não quero ser forte. Eu não consigo ser forte. É tudo muito injusto e, ainda que esse assassino pegue pena máxima, essa dor jamais vai passar.”
Traumas antes e depois
A psicóloga Jhanda Siqueira explica que o trauma da violência contra a mulher antecede o feminicídio e também pode gerar sequelas para a vida toda. Nas palavras dela, ninguém passa ileso por uma violência, fato que gera em crianças, adolescentes e jovens, sensação de abandono e solidão porque as pessoas que deveriam estar passando segurança estão mostrando agressão.
Quando as agressões psicológicas, verbais e físicas culminam com o assassinato da mãe e esse filho presencia o crime, o trauma ocorre em diversos níveis. “A criança sente que não tem valor, pois ao ver o pai matando a mãe, sente que o pai, de certa forma, também está matando a sua existência. O luto da criança tem vários sentimentos envolvidos: medo de todos, falta de vínculo seguro na vida, entre outros. Entre as consequências, estão o risco de depressão, ansiedade ou o Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Ela também pode se tornar agressiva”, acrescenta a psicóloga.
A profissional explica ainda que o ideal é que as crianças que passam por esse tipo de trauma tenham acompanhamento psicológico e psicopedagógico até a vida adulta para que não se tornem adultos disfuncionais. “A tendência é que o trauma gere dificuldade de confiar nela mesma e nos outros. Pode também se transformar em uma pessoa abusiva, por espelhar o comportamento do pai. Elas se identificam com o agressor como forma de defesa, o que pode fazer com que nunca se relacionem de forma equilibrada”, destaca Jhanda.
Para a copeira Márcia Santos, 33, a dor de perder a irmã Mirian Nunes, 26 anos, morta, asfixiada, pelo ex-companheiro Maxwel Lucas Rômulo Pereira de Oliveira, 32, é um fardo pesado demais para a família. “Eu e meu irmão estamos tentando ajudar minha mãe a seguir. Ela está vivendo um dia de cada vez e busca forças nos filhos e netos. Posso dizer que um pedaço dela foi embora (com Mirian)”, descreveu.
Mirian teve três filhas: Lara Sofia, 6, Ana Mikaela, 8, e Maria Alice, 2 meses. Com um fio de voz, a tia das crianças conta que elas ainda não conseguiram processar que a mãe não voltará mais para casa. A mais velha, Mikaela, fez um desenho da mãe no caixão. A do meio, Sofia, não consegue se referir à mãe no passado. “Dia desses, ela falou algo que me marcou muito. Disse que não podia ficar longe da mãe, pois poderia adoecer. Tive que explicar que a Mirian não está mais aqui. Agora, vive no céu”, relatou aos prantos. O Correio tentou contato com os familiares de Jeane, Giovana e Fernanda, mas eles preferiram não se manifestar.
O aumento das estatísticas comprova que, por mais que o governo anuncie medidas para conter os assassinatos de mulheres em razão de gênero, elas não têm dado respostas concretas para conter o avanço desse tipo de crime. Entre 2015 e novembro de 2022, houve 152 feminicídios no DF.
SAIBA MAIS
Onde pedir ajuda?
Quatro meios para recebimento de denúncias são disponibilizados pela PCDF:
– Denúncia on-line (https://is.gd/obhveF)
– Telefone 197 Opção 0 (zero),
– Email denuncia197@pcdf.df.gov.br
– WhatsApp (61) 98626-1197.
– A PMDF também se coloca à disposição pelo 190.
– Telefone 180 (Central de Atendimento à Mulher)
– Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deam): funcionamento 24 horas por dia, todos os dias:
Deam 1: previne, reprime e investiga os
crimes praticados contra a mulher em todo o DF, à exceção de Ceilândia.
Endereço: EQS 204/205, Asa Sul.
Telefones: 3207-6172 / 3207-6195 / 98362-5673
E-mail: deam_sa@pcdf.df.gov.br
Deam 2: previne, reprime e investiga crimes contra a mulher praticados em
Ceilândia.
Endereço: St. M QNM 2, Ceilândia
Telefoes: 3207-7391 / 3207-7408 / 3207-7438
Comitê tem até março para apresentar solução
Na última semana, o governo criou um comitê que reúne integrantes de nove secretarias de Estado, além da Defensoria Pública do Distrito Federal e da Companhia Energética de Brasília (CEB). A força-tarefa é coordenada pela Secretaria da Mulher do DF e tem 45 dias para apresentar um relatório com as medidas que serão adotadas para conter o avanço desse tipo de crime na capital. O prazo vence em 24 de março. O documento final deve ter propostas de prevenção, proteção, acolhimento e eliminação de todas as formas de discriminação e violência contra as mulheres.
A governadora em exercício Celina Leão externou sua preocupação com os filhos das mulheres assassinadas, sobretudo os menores, que de uma hora para outra ficam sem pai e sem mãe e, muitas vezes, vão parar em abrigos. “A igualdade estabelecida pela Constituição não há na sociedade”, frisou.
Levantamento realizado pela Câmara Técnica de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios (CTMHF) da Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP) aponta que, desde março de 2015, quando entrou em vigor a “Lei do Feminicídio”, até o mês de dezembro de 2022, 74% dos casos ocorreram dentro de residências. Os dados revelam ainda que em 65%, a motivação foi o sentimento de posse, ciúme ou não aceitação do término do relacionamento. De março de 2015 a dezembro de 2022, 51,8% das vítimas não haviam registrado ocorrências anteriores de violência doméstica pelo mesmo autor.
Por meio do Programa de Atendimento Multiprofissional às Vítimas de Violência (Pró-Vítima), a Secretaria de Justiça e Cidadania do DF (Sejus) oferece assistência social e psicológica às pessoas vítimas, seja de forma direta ou seja indireta, de violência, dentre as quais estão crianças e adolescentes órfãos do feminicídio.
Publicada no Diário Oficial do DF em agosto de 2021, a Lei Nº 6.937/2021, de autoria do deputado Fábio Félix (PSol), instituiu o Programa Órfãos do Feminicídio, que estabelece ações de atenção e proteção a essas crianças e adolescentes. O projeto deve compreender a promoção, entre outros, dos direitos à assistência social, à saúde, à alimentação, à moradia, à educação e à assistência jurídica gratuita para órfãos do feminicídio e respectivos responsáveis legais.
Além disso, a lei determina a obrigatoriedade de que a Polícia Civil comunique ao Conselho Tutelar competente, o nome completo e a idade de crianças e adolescentes dependentes de vítimas de feminicídio para que sejam acompanhados pelo poder público. O atendimento aos órfãos e aos responsáveis legais deverá ser realizado de forma integrada entre os Centros de Referência Especializados em Assistência Social e os serviços que compõem a Rede de Proteção às Mulheres em Situação de Violência e o Sistema de Garantias de Direitos de Crianças e Adolescentes.
*Estagiário sob a supervisão
de Adriana Bernardes